sexta-feira, 30 de abril de 2010

Quando a história não sepulta

- oi.
- oi.
- tudo?
- tudo. E contigo?
- tudo. Fazia tempo que a gente não se via, hein?
- sim. Que bom que tu aceitou meu convite. Senta aí.
- que bom tá aqui contigo. Eu pensei em você as vezes.
- eu também, sempre pensei em você, todos os dias desde que te encontrei, tu não tem idéia de quanto pensei em você...
- sério? Não imaginava que tinha causado esse impacto...
- pois, causou. To contente que você tenha vindo. Tenho um filme que quero te mostrar. Aceita um bolinho?
Ela liga o computador, ele olha contente a tela, comendo e pensando em como cortar a parte do filme e partir logo pro sexo. No parque, os dois sozinhos... ela não era exatamente bonita, mas, era interessante, bem humorada, espirituosa e gostava de futebol.
- que filme é? É longo?
- não é longo, é sobre minha mãe.
- tua mãe tem um filme?
- eu que fiz...
Ele fica meio desconcertado. Por que ela iria lhe mostrar um filme sobre a mãe? Ai, ai, isso tava esquisito...
Começa a película. Uma mulher com o rosto bastante envelhecido está chorando. A filmagem é simples, e a imagem treme. "mãe?", diz uma voz no filme. A mulher pára de chorar, e olha a câmera como se não a visse. "encontrei ele na rua...", a velhinha começa a dizer, "ele tava comprando pão, na padaria onde sempre vou... ele me olhou, me reconheceu, e eu saí correndo...", "por que, mãe? por que correu?", "tenho medo... medo que ele faça de novo e de novo...", as lágrimas voltam a correr pelo rosto sulcado da mulher, a câmera treme mais e é colocada sobre algum suporte fixo, "nunca mais vou sair de casa...", soluça.
- então, gostou?
- é sua mãe? Que aconteceu com ela?
- reencontrou teu pai.
A cara do moço diz que ele não entendia nada. Sem saber o que fazer, pega mais um bolinho, o sabor está estranho, não se sente bem.
- sabe, uma história bem triste. Era 16 de maio, 1971, minha mãe tava esperando meu irmão mais velho, tinha 5 meses de gravidez, quando teu pai a encontrou pela primeira vez. Sabe o que fez com ela? Sabe o que os soldados que estavam sob o comando dele fizeram com ela? Não sabe?
O rapaz gaguejava, lívido, sentindo queimar por dentro e uma sensação estranha se estender pelo corpo.
- ela perdeu meu irmão. Quase se perdeu também. Resistiu a quase tudo desde então. Mas, ontem reencontrou teu pai, maldito, e hoje soubemos que ele continua anistiado. Por isso fiquei tão feliz em ter te encontrado, e que você tenha aceitado meu convite. Estão bons os bolinhos? Eu que fiz. Pode ficar com os que ainda sobram.
Fecha o computador, vai embora leve, se preparando pro julgamento.

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