sábado, 22 de maio de 2010

17. Sobre o que é pedra

Com o material selecionado dos cadernos e anotações que havia recolhido no lixo, com listas de endereços, Pedro distribui alguns agentes para começar a caçada.

Os soldados que fizessem a guerra lá fora. Aqui, sua guerra era caçar esses insistentes comunistas que ainda falavam em socialismo. E ia fazer isso com qualidade. “esses merda”.

Nascido em uma família pobre, Pedro havia crescido apanhando dos meninos maiores na escola.
“Trabaia, vadio, trabaia se acha que vai ocê vai tê vida boa”, dizia o pai quase todo dia.
Odiava o pai, odiava trabalhar. Desde muito cedo, vendia picolé na rua, e mentia pra mãe ao entregar apenas uma parte do dinheiro que conseguia.

Do pai, recebia uma surra de socos por semana, fosse porque estava roubando frutas nas feiras, fosse porque o homem tivesse passado da conta na bebida. Da mãe, a comida pronta, a roupa lavada, alguma ajuda nas aulas de língua e literatura, puxões de cabelo, surras com vara de marmelo, gritos e choro.

A mãe gostava de ler, mas, o pai brigava com ela cada vez que a via com um livro na mão. “não tem mais o que fazê, não? Te dô o que fazê”, a mãe chorava escondido, e as vezes sacudia Pedro pelos cabelos para amenizar a raiva e a impotência que sentia.
Ao dar a luz, as complicações do parto levaram o medico a extrair-lhe o útero, optando pelo caminho mais fácil, e a mulher ficou com um único filho.

Em alguns momentos da infância, Pedro cometera o erro de perguntar por quê não tinha irmãos e irmãs. A resposta, nas três ocasiões, havia sido uma surra com vara de marmelo.

O adolescente estudava, os poucos livros que a mãe escondia o levaram à biblioteca pública, e aí devorava historias e mais historias. Algumas delas o convenceram de que devia reagir às injustiças que sofria na escola.

E reagiu.

Nas noites da vila, conheceu um grupo que se reunia para brigar entre si. Chegava em casa tarde, com os olhos roxos, com os lábios partidos, uma vez teve três dedos quebrados; “foi jogo sujo”, apontaram alguns do grupo, mas, não havia o que fazer depois que os ossos estalaram, dobrados pelos adversários.
A ele lhe havia caído bem o estar nos limites. Dentes e costelas passaram a depender de cuidados mais contínuos. Com sorte, nunca teve o pulmão perfurado.

Alguns meses e dentes depois, cada dia mais feio, Pedro se enfrentou a um dos que se divertia em persegui-lo. “Ehhh, fiote de papai!”, provocou. A surra foi tão tremenda, pública e notória que Pedro ganhou fama.

Meninas começaram a dar-lhe espaço. Mas, não queria saber de nenhuma. Só queria estudar, ler e brigar.
Foi ficando forte em sua magreza, se recusava a tomar qualquer anabolizante oferecido por algum amigo, tanto por teimosia e orgulhos, quanto por falta de dinheiro.
Há tempos havia deixado de buscar dinheiro em trabalhos temporários. Quando precisava, tomava de onde fosse mais simples e seguro, fosse o pai, fosse algum desavisado com a carteira mais à mão. Todavia não gostava de roubar.

O sabor do olhar que misturava medo e admiração que recebera ao dar a primeira surra na escola, lhe havia metido a vontade de ser o tal “alguém” que o pai queria. Mas, queria ser um alguém que pudesse continuar sentindo vida afora o prazer de pôr medo nos olhos alheios.

A escolha da profissão chegou por um caminho algo torto. Um dia, rondando um caixa automático, tentando descolar algum trocado, foi levado pela segurança. Andava roto, as vezes sujo, sem dentes. Muito suspeito.
Foi parar na delegacia. Serviu de saco de pancada a policiais e presos. Agüentou firme, não chorou, não reclamou. Apesar da idade, era um homem duro, com corpo curtido pela dor, pela fome e pelo medo. Tanto ler e pensar lhe haviam dado firmeza psicológica. “Dezesseis anos?”, ria o delegado, “ó, só não vai ser mulherzinha porque é muito feio...”

O soltaram logo, sem nenhum registro. Pisou na rua decidido: ia ser polícia.

Agora tinha os dentes recolocados, o cabelo bem cortado, a roupa e o rosto bem tratado favoreciam a beleza que a sujeira, a falta de dentes e cabeleireiro haviam escondido em sua infância e adolescência.
A altivez que transmitia nos olhos encantava e amedrontava as pessoas.

Nunca se havia casado, nunca havia tido um relacionamento de mais de duas semanas com nenhuma mulher. Nenhum amigo tampouco ousava sugerir, nem de brincadeira, que ele fosse homossexual. “mulher é fraca, e fraco pra mim é na ponta da chibata”, respondia quando alguém queria saber das companhias.

Até que foi obrigado a conhecê-la. “Mas, senhor, com a minha formação e experiência...”

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