segunda-feira, 31 de maio de 2010

23. Sobre as tarefas de Zita

Deixando a amiga dormir, Zita revê a lista de coisas a arrumar: leite condensado, carimbos, roupas, perucas, plástico, cola, estiletes, mimeógrafo,...
Sai cedo, faz a feira, disfarçadamente entrega um bilhete a um menino; vai ao consultório médico de sempre, enquanto a atendente verifica se há horários, pede licença e usa o telefone do consultório.
"Oi, sou eu. Você vai receber o endereço. Segue pra lá e leva o pacote pro segundo ponto marcado."
Desliga, agradece a atendente, deixando uma consulta marcada pra 30 dias.

A idade fazia de Zita a segurança em pessoa. Quase chegando aos setenta anos, tinha conhecido a mulher em uma festa de bairro. A amizade nasceu por caminhos difíceis, pois a personalidade forte das duas  as fazia digladiarem constantemente. Disso nasceu um respeito mútuo, que se enraizou na sinceridade e na afinidade política.
Zita não era uma militante do cotidiano; aposentada, vivia de orientar leituras aos mais jovens, e muitas vezes acolhia a mulher quanto esta mergulhava em dias tristes. A mais jovem chegava, colocava Orishas no toca-CD, deitava-se no sofá com uma lata de leite condensado, e as vezes contava histórias, outras vezes ouvia as histórias.
Foi assim que Zita soube de Bu, de Lenoir, de Wolf; foi em dias assim que as duas construíram teorias sobre o porvir, e acharam que deviam ir se preparando para uma ofensiva da direita.

A mulher ouviu e aprendeu da vida de Zita. Os amores, as dores, os equívocos, as culpas, os desejos de morte e de vida, e admirava como a avó levava a vida cheia de jovialidade, sem medo do fim.
Zita não tinha filhos, um acidente a havia deixado estéril muito jovem; com isso, deixou o amor de sua vida livre para escolher ficar com ela ou não; cheia de dores, viu seu amor partir chorando por perdê-la, e quando o chamou de volta soube que ele realmente queria estar livre dela. Ele a culpou pelo fim da relação, e nunca mais se falaram.
Desde então ela se apegara aos livros. Teve amantes casuais, feriu e foi ferida, e nunca mais recuperou aquele tipo de felicidade. Conhecer a mulher que agora acolhia como filha fôra um alento. Sofriam juntas, brigavam riam, compartiam a vida dentro do possível.

A abuela chorava ainda seu amor perdido, mas, tinha convicção política como poucos. A clareza da conjuntura fizera dela uma destacada conselheira, e a experiência de vida a fazia uma estrategista como poucos.
Tempos antes as duas tinham planejado esse dia. A senha. As ações. As saídas. Até agora, tudo caminhava relativamente dentro do conforme. Menos a prisão de Wolf.

Depois de feitas as compras, Zita partiu em busca de onde estaria Wolf, descobrindo com relativa facilidade, voltou á feira e entregou outro bilhete a outro menino, com indicação do hospital e de como proceder.

Voltando a casa, observa disfarçadamente o policial que vigia, esbarra com ele e reclama da artrite, dando-lhe um simpático sorriso.

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