sexta-feira, 7 de maio de 2010

4. De como sair de casa na emergencia

"Diabos", o coração bate forte, quase saindo pela boca, quando ela abre a porta com ruído.

Pega a mochila, camisetas, calcinhas, meias, absorvente. Calça o tênis mais velho e confortável. Computador, documentos, fotos (o presente de Bu, com a seleção de fotos deles), todo o pouco dinheiro que tinha. Cadernos e anotações são enfiados de qualquer modo em uma sacola plástica.
Na cozinha, frutas, biscoitos, enlatados, amendoas, duas garrafas de água, uma corda, isqueiro, fósforo, lanterna. Abridor de garrafa e de lata. A faca já estava na mochila, pois tentava nunca se separar dela.

Os ouvidos atentos, o alto-faltante da polícia continua ressonando a um volume agradável. "É guerra..."

Volta ao quarto. Olha os livros, penalizada. Pega as correntinhas recebidas da irmã e da segunda mãe, mais o anel do amado. Agasalhos. A manta. O cachecol que Lenoir havia deixado na última visita. Bloco de anotações, canetas.

Coloca o chapeuzinho, olha a casa, em um sorriso guarda as lembranças dos muitos dias em que Lenoir, aparentemente franzino, a havia levantado nos braços com uma força surpreendente. Fecha os olhos um segundo, revivendo as expressões de amor dele, saboreia as lembranças, o abraço, a boca e a barba roçando sua nuca, "é importante saber fazer comidas pra depois...", cozinhar a quatro mãos, esticar as pernas no sofá, dividir a cerveja, os sonhos, a preocupação, as alegrias... ele havia ligado na noite anterior, e ela se arrepende de não ter feito uma declaração... se arrepende de não ter enviado os e-mails amorosos que orgulhosamente ficou guardando na caixa de rascunhos. Como estaria Lenoir?
"deus, se existe, cuida dele... deusdeusaterra... alguém..."

Escreve um recado, por se acaso tudo não passe de um equívoco. Pega a bicicleta da amiga, bate a porta e sai. Sabe que há um campo a atravessar, e tem esperança que os cavalos estejam aí, como tinha visto durante os muitos dias que passou de trem ao lado do campo.

Nas ruas, mais calma, alguns soldados do exercito patrulham. Alguma concentração nos mercados, e a energia eletrica voltando aos quarteirões. O céu continuava com uma estranha cor.
Tentando disfarçar, atira a sacola com cadernos em um lixeiro de orgânicos.

Pouco antes de chegar na autoestrada, uma barreira. Ela abre o sorriso, cumprimenta o soldado. "Onde vai, guapa?", "Marquei com meu pai um passeio...", "onde?", "alí por El Escorial", "devias ficar em casa", "pois é, é que meu velho está meio estressado, e se não fizermos o que tínhamos planejado, pode surtar de vez", "seus documentos?", ela entrega, ele olha, chama um colega, vai ao veículo. O coração dela se desritima, controla a respiração, mantém o sorriso.

O milico volta, "vai com cuidado", "obrigada, oficial. Mas, tá tudo bem, né?", "tá, tá tudo bem, vai com cuidado".

"Que pena, que pena...", pensa o soldado ao ver a mulher pedalar a toda velocidade, se afastando.

Atrás dela vem um carro, devagar, o homem mostra uma identificação, e passa na barreira.

Não havia pedalado muito, e já não respirava direito. "Diabo, diabo, diabo...", o corpo cobra a fatura de tantas pneumonias, bronquite, e outros problemas respiratórios da infancia e adolescencia. A capacidade pulmonar foi diminuindo, pressionada pelos pezinhos na água fria e a cabeça no sol quente, quando era uma menininha de 9 anos, lavando roupa no rio; antes e depois, tanto andar na chuva e a roupa secar no corpo, pés descalços na lama, titiritando de frio nos invernos rigorosos, com os pés vermelhos em chinelos havaianas, indo tomar o ônibus escolar as 06 da manhã...

A estrada tem algum movimento. A adrenalina impulsiona o pedalar, quando os cavalos surgem à vista.

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